segunda-feira, 27 de abril de 2009

História da Matilde

Esta história é quase contada na primeira pessoa. Não acaba bem, nem mal, porque continua. E começou há 12 anos. É uma história de sobrevivência de um cancro raríssimo causado pelo vírus da mononucleose. Mas principalmente é uma história de muita dor. Que não acabou. Pelo contrário.
Matilde (nome fictício), 55 anos, recua até à Primavera de 1986 e às memórias com as quais ainda hoje tem muita dificuldade em lidar, para contar ao PortugalDiário como tudo começou. Fecha os olhos, recua, abre-os, recorda, aperta as mãos, mesmo os dois dedos da mão direita que mexe perfeitamente, mas não sente... E começa.
«Apareceram-me gânglios no pescoço». Primeiro foi o médico de clínica geral que não valorizou, depois foi o coração a dar o aviso, e os cardiologistas do hospital a dizerem-lhe que não tinha nada. Como as dores cardíacas persistissem voltou ao hospital de madrugada e, nessa altura, perante as perguntas do médico, falou dos gânglios. A partir daí, «entre análises e consultas, a médica admitiu a hipótese de um linfoma, mas não me disse, li ao contrário o que ela tinha escrito no relatório».
Estávamos no mês de Março. A médica reclamou urgência, desdobrou-se em contactos para apressar uma operação que permitisse recolher parte dos gânglios, mas só conseguiu uma consulta para Julho. A operação aconteceria muito depois.
«Não sabia se estaria viva dali a um ano»
Matilde não se conformou: «Usei muitas cunhas, falei com quem conhecia e com quem não conhecia. Consegui ser operada em Abril». Uns dias antes desta operação contou finalmente ao marido. Também antes da operação e com a palavra «linfoma» lida ao contrário na cabeça, comprou, com um ano de antecedência, o vestido da primeira comunhão da filha. «Não sabia se estaria viva dali a um ano». Silêncio. «Isto custa-me muito. É dos momentos que mais me custa». Chora. «Já não chorava há muito tempo. Agora já só choro na psicoterapia».
«Há outro momento que mexe muito comigo e que me custa falar... eu andava a fazer radioterapia e sentia-me mesmo mal, o meu filho estava no primeiro ano do 1º ciclo e pediu-me para vestir um bonequinho de esponja que tinham feito na escola. Não conseguia mesmo, não queria fazer, não tinha força. Tentei dizer-lhe, mas ele insistia: «Mamã, mas todos os meninos vão ter...» Eu fiz.» Matilde volta a chorar. Parámos. Mudamos de assunto. Para ganhar forças. Ou parar. «Não, eu quero continuar».
Voltámos à operação. «Tiraram-me alguns gânglios e enviaram-nos para o patologista. O médico disse logo ao meu marido que era um linfoma. A mim não. Curiosamente o patologista reconheceu o meu nome de termos sido colegas de infância e ligou a uma amiga comum que a seguir ligou ao meu marido. Era um carcinoma da nasofaringe. Foi a vez do meu marido guardar segredo».
O víris da mononucleose pode «acordar»
Matilde explica que este tipo de carcinoma, raríssimo, é provocado pelo vírus Epstein-Barr. «Em tempos terei tido mononucleose e fiquei portadora deste vírus. Se uma pessoa estiver muito fraca ou tiver sofrido um choque emocional forte o vírus pode «acordar» e alojar-se num ponto do sistema respiratório. A mim aconteceram-me as duas situações, estava muito fraca porque os meus filhos não dormiam (só começaram a dormir depois dos 5 anos) e o meu pai tinha morrido há dois meses. Mas tudo isto só soube depois».

Perante o diagnóstico de carcinoma da nasofaringe, o marido de Matilde tentou contactar a médica, mas ela estava de férias. Optou então por lhe contar. O mundo de Matilde caiu-lhe aos pés. Mas conseguiu reunir forças e decidiu «furar o sistema». Foi falar com o patologista, falou com uma amiga do Hospital de Santo António e com mais dois médicos e optou-se por se mudar para o IPO. «Com cunha», admite.
Para não atrasar o processo, fez biópsia e TACs a nível particular e nem sequer accionou o seguro. No IPO do Porto, os médicos decidiram então que iria fazer radioterapia intensa seguida de quimioterapia, porque, no sítio onde estava, o carcinoma não era operável e os gânglios já eram metástases». Este tratamento todo demorou um ano. Professora do ensino secundário, apaixonada pela sua Matemática, conseguiu não meter baixa, no Conselho Executivo ajudaram-na. Queria passar tudo isto e voltar.
Os tratamentos
«Todos os dias fazia radioterapia. Saía de lá muito cansada, enjoada, dorida, muito ferida, queimada até, do nariz até ao peito. Algumas vezes tive de interromper as sessões dadas as sequelas. O meu organismo não aguentava. Tinha um ar muito doente. Lembro-me que me custava muito fazer o jantar.» E os miúdos? «Ela tinha sete/oito anos, ele tinha cinco/seis anos, não se lembram de muito dessa altura, só que eu tinha o cabelo muito branco. Não o pintava. Achava que me podia fazer mal, como as tintas têm químicos¿».
Depois começou a quimioterapia. «E foi ainda pior porque tinha de estar uma semana inteira internada e 23 horas com químicos. «Soltavam-me» uma hora de manhã, para tomar banho. O meu caso era mesmo muito grave, já estava no sistema linfático. Acabei por só fazer três semanas de quimioterapia. Era demasiado agressiva e não aguentei. Comecei então outro tipo de quimioterapia, de três em três semanas uma sessão de uma hora».
Sequelas não mais paparam
O carcinoma «morreu», mas as consequências não mais pararam de aparecer. «Fiquei quase sem saliva, fiquei surda (uso aparelho), tive várias infecções nesta zona (nasofaringe), um osso do maxilar morreu, o que me causou várias infecções. Aliás, suspeita-se que ainda não tenha saído todo.» Matilde explica melhor: «Era uma osteoradionecrose provocada pela radioterapia. Depois de ter tirado um dente, fiquei com um buraquinho na boca, que nunca fechava, não cicatrizava. Por isso, havia infiltração de bactérias. Tive de fazer oxigenoterapia para cicatrizar e, para isso, tive de ir para o Hospital da Marinha, em Lisboa, porque é o único sítio onde existe uma máquina hiperbárica. Fiz tratamentos diários durante três meses».
Mas as sequelas não pararam por aqui. Também por causa da radioterapia, há cerca de dois anos, duas vértebras partiram. «Dentro do meu azar tive sorte porque as vértebras, contrariamente ao que os médicos esperavam, em vez de se afastarem e afectarem a medula, o que me deixaria paralítica, encaixaram uma na outra, o que me causa dores imensas e me impede de fazer quase tudo. Para andar de carro, por exemplo, tenho de usar colarinho».

Mais recentemente, também consequência da radioterapia, a separação entre a faringe e a laringe de Matilde rompeu-se e os alimentos começaram a ir para o pulmão. Actualmente Matilde tem um tubo comprido e fininho ligado ao estômago onde são injectados os alimentos, depois de picados e posteriormente passados pela varinha mágica. «Se meter qualquer coisa à boca pode ser muito perigoso, não só pode sair pelo nariz como ir para o pulmão e causar-me uma pneumonia».
«Perdi a noção de quantas vezes já fui para o IPO»
Esta professora de Matemática reformada já teve duas pneumonias. Uma na sequência das costelas terem partido e outra provocada pelos alimentos. Da primeira vez esteve internada no Santo António, depois ficou no IPO. «Estive internada muito tempo, não sei quanto, perdi a noção. Era uma pneumonia contagiosa. Estive isolada e não podia receber visitas¿ Pensei que já não sairia dali¿ Sabe, já perdi a conta quantas vezes fui para o IPO com problemas associados, nomeadamente com uma alergia à penicilina, que entretanto adquiri. Não morri asfixiada por minutos».
«Há algo a que nunca me habituarei
12 anos depois de lhe terem diagnosticado um linfoma, Matilde carrega o mundo nas costas, um peso insuportável que faz com que não consiga sair de uma depressão profundíssima. «O ano de tratamento foi mau, mas foi ultrapassado. Se não tivesse tido sequelas diria que tenho uma vida normal, mas a ausência de saliva nunca me deixou esquecer. Ainda assim, encontrei soluções. Mas aquilo a que nunca me adaptarei é a fazer uma alimentação por um tubo. Isso condiciona toda a minha vida. E a questão é que não sei quanto tempo vou viver. E se o buraquinho por onde entra o tubo infeccionar?...»
Sente que é uma sobrevivente? Silêncio. Longo. Por fim, a resposta: «Sim. Sei que fiz tudo o que tinha que fazer e que fiz tudo para aparecer na estatística dos sobreviventes por causa dos meus filhos. Mas todos os dias é um pesadelo. Aquilo que eu vivi não compensou. Só compensou por eles, para eles, que precisavam de ter uma mãe». E consegue olhar para o futuro? «Consigo, mas de uma forma muito negativa. Estes 12 anos ensinaram-me que há outras sequelas que ainda vão aparecer».

Tirado o site: http://diario.iol.pt/sociedade/cancro-sobrevivencia-reportagem-testemunhos/942846-4071.html

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